Pergunte a qualquer deficiente se ele se sente D-E-F-I-C-I-E-N-T-E e você vai se surpreender com as respostas. Na verdade, não é nem deficiente. É pessoa com deficiência – embora ninguém se dê ao trabalho de entender que a pessoa vem ANTES da deficiência.
Bem antes, por sinal! O que a falta de um sentido acarreta na vida de
alguém é simples: isso nos priva de algumas coisas. No caso da
deficiência auditiva, eu poderia dizer que sou privada da delícia de
compreender as conversas humanas sem esforço. Nunca pude fechar os olhos
enquanto assistia à TV ou estava no cinema, por exemplo. Tenho que
estar 1000% alerta se quiser me comunicar.
Quando leio que ‘um deficiente está
quebrando tabus’ e coisas do tipo, só fico imaginando o que se passa
pela cabeça de quem escreve algo assim. Na boa, o inconsciente coletivo
brasileiro lê deficiência e pensa logo “infeliz, coitado, pobrezinho, incapaz, inútil”. Pior é quando escrevem que ‘apesar da deficiência, fulano conseguiu fazer tal coisa’.
Bem, isso só faria sentido, no meu caso pelo menos, se a frase fosse
‘apesar da deficiência, fulana conseguiu ouvir’. Porque, de resto, a
minha surdez não tem nada a ver com as minhas capacidades e incapacidades! O Jairo Marques escreveu um post intitulado “Os coitadinhos“, que vale a leitura. Nos comentários deste post, a Lak Lobato escreveu o seguinte, que reproduzo aqui porque achei sensacional:
“Ontem, um amigo me mandou um email
com um questionário sobre PcDs que ele elaborou pra um trabalho (ele
próprio tem deficiência) e, em determinado ponto, havia a pergunta:
“Analise e responda: por que existem pessoas com deficiência que não se
aceitam?” Minha resposta: “Porque existem pessoas que não se aceitam,
ponto. Ter uma deficiência não torna as pessoas mais inteligentes, mais sensatas, mais iluminadas, mais abegnadas, etc.
Pessoas continuam sendo pessoas, mesmo quando tem deficiência.
Deficiência não promove ninguém do degrau de evolução mental humano ou
coisa do tipo.” Não sei se era bem a resposta que ele queria, mas eu
acho um saco esse eterno endeusamento X coitadismo no que toca as pessoas com deficiência. Ou somos uns coitados dignos de pena. Ou somos heróis de superação.
Não existe um meio termo, onde somos simplesmente humanos, tocando a
vida como qualquer pessoa. Qualquer conquista nossa tem que ser louvada,
elogiada, prestigiada, colocada num pedestal. E qualquer fracasso é
sempre culpa da deficiência, coitadinho de nós. Tudo tudo tudo tem que
girar em torno da deficiência. Nada pode ser analisado por si mesmo, tem
que colocar a deficiência no meio. Mas, não adianta, eu não vou aceitar
isso e achar que tudo bem. Vou reclamar sempre e brigar sempre pra
pararem já com essa idiotice. Nem anjos nem demônios, seres humanos
somente. O resto é detalhe!”
É uma pena que jornais e TV gostem tanto de apelar pro coitadismo, enquanto poderiam estar prestando um grande trabalho ao mudar o foco para o tema acessibilidade. Nós que somos surdos oralizados
temos um longo caminho pela frente no que diz respeito a isso: falta
acessibilidade para nós nas escolas, nas universidades, nos cursinhos
preparatórios para concursos, nos cursos de idiomas, e por aí vai.
Ah, e há também o fatídico ‘exemplo de
superação’. Já falei aqui em outras ocasiões e repito: na minha opinião,
a palavra correta é adaptação. Eu não superei a surdez porque ela não é ‘superável’, jamais terei meu sentido de volta naturalmente. Mas me adaptei a ela
e o meu foco não são as coisas que não consigo fazer, porque se passar
24hs pensando nisso, além de ficar louca não vou ajudar nem a mim, nem a
ninguém. E o objetivo do Crônicas, desde o início, é inspirar as
pessoas a entender que a vida continua e a gente é muito mais capaz do
que pensa ser.
Por isso me dói quando alguém me escreve dizendo que acha que a sua vida acabou porque descobriu que tem deficiência auditiva e vai ter que usar aparelhos auditivos. Dá vontade de dar um chacoalhão, um ‘pedala Robinho’. Sério! A vida acaba quando a gente morre ou então quando entrega os pontos e decide que é mais fácil ser um coitadinho do que um lutador.
E realmente é mais fácil, já que ser um coitadinho não requer esforço
algum: basta sentar, reclamar e praguejar até o fim dos dias. Enfrentar
fonoterapia, aguentar o cérebro irritado com o uso dos AASI, precisar
aprender a controlar a própria voz, virar expert em leitura labial – e
outros pormenores que vocês estão carecas de saber – isso sim é jogo duro!!
Deficiências têm a ver com recomeços. E recomeços têm a ver com encontrar aquela força interna que fica lá dentro escondida para as horas em que mais precisamos. Trate de encontrar a sua!FONTE: http://cronicasdasurdez.com/um-papo-sobre-deficiencia/
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