Sandra Regina Schewinsky*
RESUMO
O presente artigo refere-se a reflexões tanto sobre o preconceito em relação às pessoas portadoras de deficiência
física, como sobre o sofrimento do preconceituoso. Baseia-se na perspectiva da Teoria Crítica, de
acordo com os autores: Adorno, Horkheimer e Crochík. Inicialmente, haverá uma breve retrospectiva histórica
em relação às ações preconceituosas e cruéis contra as pessoas portadoras de deficiência e sua posterior
relação com a atualidade. Preconiza-se que o preconceito é um fenômeno psicológico que se dá no processo
de socialização, discorre, sobre o sofrimento, crueldade e vergonha. Ressalta, por fim, a necessidade de uma
compreensão crítica para melhorar as condições individuais e sociais de vida. ACTA FISIÁTR. 2004; 11(1): 7-11.
PALAVRAS CHAVES
Preconceito, discriminação social, pessoas portadoras de deficiência, teoria crítica.
ABSTRACT
This article aims on reflecting not only about the prejudice concerning physically handicapped people, but
also about the suffering of the ones who see it with eyes of prejudice. It is based on the perspective of the
Critical Theory, according to the authors: Adorno, Horkheimer and Crochík. At first, there will be a brief
historical retrospective related to the prejudiced and cruel actions against the handicapped people and its
future relation with our current time. It has been revealed that prejudice is a psychological phenomenon,
which happens according to the process of socialization, spreading around suffering, cruelty and shame.
Finally, this paper reaffirms the necessity of a serious critical comprehension in order to improve both the
individual and the social life conditions.
KEYWORDS
Prejudice, social discrimination, disabled persons, critical theory.
____
*SANDRA REGINA SCHEWINSKY:Psicóloga-Encarregada do Serviço de Psicologia da DMR-FMUSP, Doutoranda em Psicologia
Social pela PUC-SP, Mestre em Psicologia pela Universidade São Marcos, Especialista em Psicologia Hospitalar.
Recebido em 29/10/2003. Aceito em 28/04/2004.
A VIDA!
As pessoas vivem a rotina frenética, de casa para o trabalho,
levando os filhos para escola e a todos os lugares, correndo atrás
do tempo. Acham-se felizes, com o lazer obrigatório, sexo programado,
consumo desproporcional do conforto tecnológico e “imprescindível”
e, escravas da estética. Buscam sentir-se poderosas
e potentes com suas vidas.
De repente, em ínfimos minutos, o inusitado ... o acidente.
A Divisão de Medicina de Reabilitação do Hospital das Clínicas
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (DMR
HC/FMUSP), assiste a portadores de grandes incapacidades físicas.
São pessoas que têm suas vidas amplamente modificadas pela
instalação da deficiência, em que perdem a independência para
quase todas as atividades, das mais primárias como comer só, higiene
pessoal, andar livremente por onde desejar e, com tais perdas a
autonomia normalmente se esvai.
As seqüelas podem ser dramáticas nas vidas destas pessoas,
mas as acompanham dia a dia, um sofrimento não menos insignificante:
a crueldade do preconceito em relação ao deficiente físico.
Ao entrar em contato com a Teoria Crítica, eu adoraria ficar à
parte, pensar que as provocações dos pensadores: Adorno,
Horkheimer1 e Crochík2 nada tinham em comum com minha prática
de trabalho e forma de encarar a vida. Engodo no qual tentei
refugiar-me, mas não consegui permanecer por muito tempo, talvez
culpa da minha má consciência ...
O incômodo sentido é a mola propulsora do atual artigo, em
que convido aos leitores a percorrer comigo algumas idéias sobre a
barbárie do preconceito contra o deficiente acompanhados de Adorno,
Horkheimer1, Crochík2 e outros autores, sendo que “parece”
ficar obvio que as vítimas somos todos nós.
Atuações preconceituosas e cruéis em relação às pessoas portadoras
de deficiência física perpassam pela história. Silva3 contanos
que no Egito Antigo, consideravam que a deficiência era
provocada por “maus espíritos”, sendo que a nobreza, os faraós, os
sacerdotes e os guerreiros tinham acesso a tratamentos, enquanto
os pobres sucumbiam nas mãos de charlatães, serviam como atrações
em circos ou eram usados pelos sacerdotes para estudos e
treinamentos de cirurgias.
Na civilização hebraica a discriminação era manifesta nas leis,
Moises escreve em “Levítico” que o homem com deformidade
corporal não pode fazer oferenda a Deus, e nem se aproximar de
seu ministério. A deficiência era vista pelos antigos hebreus, como
indicadora de impureza, remissão de pecados antigos, interferência
de maus espíritos e das forças más da natureza, logo os deficientes
tinham que esmolar para sobreviver, ficando expostos nas
ruas e praças, e eram apenas tolerados pela sociedade3 (p.74).
Na Grécia, havia a super valorização do corpo belo e forte que
pudesse participar das guerras. Por isso aquele que não
correspondesse a esse ideal era marginalizado e até mesmo eliminado,
entretanto guerreiros mutilados em batalhas eram protegidos
pelo Estado.
A civilização romana também preconizava a perfeição e estética
corporal, a deficiência era tida como “monstruosidade” fato que
legitimava a condenação à morte dos bebês mal formados: Sêneca,
em Amaral4 , justifica o infanticídio:
... nós sufocamos os pequenos monstros; nós afogamos até
mesmo as crianças quando nascem defeituosas e anormais: não é
a cólera e sim a razão que nos convida a separar os elementos
sãos dos indivíduos nocivos (p.46).
Algumas crianças não eram mortas e sim abandonadas à margem
do Tibre e levadas pelos escravos e pobres para futuramente
esmolar: ocupação rendosa.
Com o surgimento do Cristianismo, a visão de homem modificou-
se, para um ser individual e criado por Deus. Os deficientes
passaram a ser criaturas de Deus, com destino imortal e merecedores
de cuidados, ... a alma não é manchada por deformidades no
corpo (...) uma grande alma pode ser encontrada num corpo pequeno
e disforme3 (p. 150). Em decorrência do pensamento cristão,
pessoas com más formações congênitas ou defeitos passaram
a ser protegidas pela lei de Constantino em 315 depois de Cristo.
Entretanto a exclusão dos deficientes continuou no discorrer da
história. No Império Bizantino, a Igreja Católica em conjunto com
o Estado, levava-os para mosteiros. A própria Igreja incumbia-se
de realizar mutilações como punições por crimes cometidos. Na
Idade Média, a deficiência era vista como atuação de maus espíritos
e do demônio, sob o comando das bruxas, e também resultado
da ira celeste e castigo de Deus, havia a segregação e os deficientes
eram ridicularizados.
A partir do Humanismo, no século XV, modificou-se a concepção
de valorização do homem, iniciando-se a diferenciação no tratamento
de portadores de deficiência e da população pobre em geral.
Nos séculos XVI e XVII, os serviços de saúde passaram a ser
também de responsabilidade da comunidade.
Amaral4 refere:
Paracelso e Cardano (ambos do século XVI) são os primeiros
a trazer a questão da deficiência para o âmbito da Ciência, mais
especificamente da Medicina (pois eram médicos e alquimistas),
demarcando uma fronteira entre a visão teológica ou moral e
cientifica. Esses estudiosos, embora mantivessem uma estreita ligação
com as teorias que enfatizavam as forças cósmicas, afirmavam
a legitimidade de tratamento para as pessoas com deficiência
(p. 49).
Em meados do século XVII, foram criados os hospitais gerais,
os quais eram; uma combinação de asilo, para a exclusão, e de
hospital para a cura e estudos. Segundo Foucault5 a medicina até o
século XVIII, tinha caráter individual, em que os cuidados de médico-
paciente davam-se em classes de maior posse, os pobres continuavam
à mercê de charlatães. Nesse século, começa a se estruturar
a medicina social.
No século XIX, devido à influência da filosofia humanista e o
advento da Revolução Industrial, a concepção social de deficiência
continuou a sofrer modificações.
ACTA FISIÁTR. 2004; 11(1): 7-11 Schewinsky S R. A barbárie do preconceito contra o deficiente - todos somos vítimas
Segundo Amaral4:
Nesse período há a coexistência de múltiplas representações
do fenômeno e, conseqüentemente, de múltiplas abordagens e atuações:
algumas de caráter mais educacional, outras de cunho
médico. Mas de uma forma geral, pode-se assinalar esse período
como o da superação da visão de deficiência como doença e o
início de seu entendimento como estado ou condição (p.50).
No século XX, há um grande incremento da assistência às pessoas
portadoras de deficiência no mundo todo, pois além da filosofia
humanista, as nações deparavam-se com mutilados pós as duas
grandes guerras e acidentados nas industrias. Surgem programas
de reabilitação global, incluindo a inserção profissional de pessoas
deficientes.
Nos dias de hoje, pleno século XXI, qual a realidade que se
impõe?
No Brasil, temos uma verdadeira fábrica de crianças com Paralisia
Cerebral quer seja pelas más condições de saúde e pré-natal
das parturientes, quer seja por negligência médica. Em função da
violência, deparamo-nos com um número cada vez maior de jovens
atingidos por armas de fogo, acidentes automobilísticos e
outras conseqüências do uso indiscriminado de drogas. Adultos
idosos ou não acometidos de doenças neurológicas, muitas
degenerativas. Os centros de reabilitação são insuficientes e em
muitos lugares do país até mesmo inexistentes, fora isso, qual a
ideologia que impera?
Ao acompanharmos o movimento histórico da concepção e atuação
com o deficiente é fácil pensar: Como as coisas melhoraram!
De fato é inegável a evolução, mas não podemos nos deixar cegar
pelas mudanças e não fazermos uma reflexão crítica sobre o preconceito
vigente.
O preconceito está em nós! Todos somos algozes e vítimas dele,
aprisionados na violência das idéias pré-concebidas e conceitos
impostos sem reflexão.
Segundo Crochík2, o conceito de preconceito é um fenômeno
psicológico que se dá no processo de socialização. Ele nos diz em
1995:
... o preconceito diz mais respeito às necessidades do
preconceituoso do que às características de seus objetos, pois, um
destes é imaginariamente dotado de aspectos distintos daquilo que
eles são (p.16).
A pessoa portadora de deficiência pode suscitar no
preconceituoso, afetos diversos relacionados aos mais diferentes
conteúdos psíquicos. Da mesma forma, que ela própria trás consigo
preconceitos oriundos da cultura.
Na nossa sociedade, em que o indivíduo “vale” pela sua produção
e riqueza, no momento em que fica impossibilitado de exercer
papéis profissionais que lhe conferem o status quo, recai sobre ele
a imagem de inutilidade e de menos-valia.
Neste sentido denunciam Adorno / Horkheimer1:
Todo o mundo é o que é sua fortuna, sua renda, sua posição,
suas chances. Na consciência dos homens, a máscara econômica e
o que está debaixo dela coincidem nas mínimas ruguinhas. Cada
um vale o que ganha, cada um ganha o que vale. Ele aprende o
que ele é através das vicissitudes de sua vida econômica (p.197).
Não raro, há a dor daqueles que se apercebiam como bem sucedidos,
vida social agitada e “bem queridos por amigos” e após a
instalação da deficiência, encontram-se isolados e excluídos. De
fato, é a morte daquela forma de viver, a lembrança do que era
passa a ser um fantasma e o luto instala-se. Novamente recorro a
Adorno / Horkheimer1:
... O que um indivíduo foi e experimentou no passado é anulado
em face daquilo que ele agora é, daquilo que ele agora tem e
eventualmente daquilo para o que pode agora ser utilizado (...) O
que se passa com todos os sentimentos, ou seja, a proscrição de
tudo aquilo que não tenha valor mercantil, também se passa da
maneira mais brutal com aquilo de que não se pode sequer obter a
reconstituição psicológica da força de trabalho: o luto (p.201).
A civilização prega o apego às coisas materiais em detrimento
as espirituais. Para adquirir tudo o que é imposto trabalha-se mais
do que as próprias forças, a vitória da sociedade é a derrota do
indivíduo, o qual se sacrifica para sobreviver, na ilusão de que tal
sacrifício pode levar ao bem viver. Instala-se a moral do trabalho,
seguindo-se a racionalidade do sistema para aprender as suas regras.
Desta feita, todos passamos a ser meros executores de papéis,
sendo que nos perfis profissionais já estão embutidos as características
pessoais para sermos aceitos.
Segundo Crochík2:
No momento em que se valoriza a produção que envolve a ação
eficiente, quer sobre coisas, quer sobre os homens, e que se elege
o indivíduo competente como modelo a ser seguido, a produção
quer material, quer espiritual toma o lugar da reflexão, pedindo
ações cuja racionalidade está circunscrita à esfera do trabalho e
já foi, em grande parte, deliberada anteriormente, deixando pouco
a ser pensado (p. 26).
A engrenagem é massacrante, instaura-se o impulso desmedido
para o lucro e o fetiche da mercadoria, que não são naturais do
homem, mas sim talhados pela sociedade que se mantém de forma
violenta, pois a ameaça de não poder suprir a autoconservação é
declarada de várias formas. O desespero causado pela possibilidade
de não ter trabalho é mascarado pelo consumo irracional, prazeres
sem sentido, obediência, acreditar em mentiras manifestas que
não enganam a ninguém e a ideologia do sacrifício.
O engodo que está por trás do discurso de que o sacrifício é
necessário, vem a serviço de manter a ordem e o poder. A pessoa
sacrificada e subjugada imputa a si mesma a culpa do infortúnio
sofrido.
ACTA FISIÁTR. 2004; 11(1): 7-11 Schewinsky S R. A barbárie do preconceito contra o deficiente - todos somos vítimas
Ilustro, aqui com o caso de um jovem militar que se
acidentou em serviço e sua grande dor é a possibilidade da aposentadoria
ou ter que mudar de cargo em função das limitações físicas
e de memória, chocou-me quando falou “Mas eles têm que entender
que eu não tive culpa”. Uma enxurrada de pensamentos invadiu-
me, o profissional que sofre um acidente em função do próprio
trabalho é tido como “fracassado, pois vacilou” é inculcada a idéia
do dever de ser infalível. Desta feita, a responsabilidade da fatalidade
recai sobre o próprio doente.
De acordo com Adorno / Horkheimer1:
Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em
encobri-lo (o poder do monopólio), seu poder se fortalece quanto
mais brutalmente ele se confessa de público (p. 114).
A pessoa se torna um instrumento facilmente substituível, ela
despreza os próprios interesses e sente-se obrigada a desempenhar
comportamentos irracionais para se adaptar a sociedade desumana
e injusta, não se vislumbra a possibilidade de discutir o assunto. A
sociedade esmaga o indivíduo que não lhe apraz e impinge a
corrupção do ego pela fragilidade.
O portador de deficiência física passa a ser uma ameaça, mesmo
que imaginária, para os outros, pois nele está contida a frágil
natureza da humanidade, a possibilidade das limitações, o sofrimento
que se quer negar e ocultar a qualquer preço. A ele é negada
a possibilidade de trabalho, seu corpo não condiz à estética préestabelecida,
ainda hoje, é considerado por muitos como sucata
humana. O terror de não ter valor de produção e não poder suprir a
autoconservação leva os preconceituosos ao asco.
São tantas obrigações, tantos sacrifícios e regras a serem cumpridas,
que a mesma dureza que a pessoa deve ter consigo mesma,
leva-a ser dura com o outro. Desencadeia o ódio ao mais fraco e a
necessidade de julgar-se melhor, para assim, não entrar em contato
com as próprias dificuldades e achar-se potente na sua impotência.
Crochík2 cita que Sartre, Adorno e Horkheimer apontavam simultaneamente
o Preconceito como uma Paixão, a meu ver a cegueira
da paixão serve para a pessoa não abalar suas crenças e aperceberse
do próprio cárcere, negar seu desespero e o medo da fragilidade.
Crochík2:
A sensação de superioridade do preconceituoso em relação à
sua vítima é solicitada por uma cultura que não permite um lugar
fixo a ninguém, pois é a própria insegurança de todos os indivíduos,
é a eterna luta de todos contra todos, que sustenta, assim, o
poder sobre o mais fraco é a busca de um espaço em uma sociedade
que gira em torno do poder, busca fadada ao fracasso (p. 61).
A deficiência da pessoa jamais passa em brancas nuvens, gera
incômodos dos quais o preconceituoso tenta se defender, pode ser
pelo ataque propriamente dito, o abandono, a rejeição, ou pelo seu
contra-ponto a superproteção que o desvitaliza, como ainda a negação
da deficiência por atenuações, por exemplo da fala hipócrita
de que somos todos deficientes. Fico arrepiada quando escuto um
profissional da área de saúde ou de educação dizer: “É tão gratificante
trabalhar com eles ... que eu não trabalho por dinheiro e sim
por amor“ discurso obviamente preconceituoso, que ainda vem
travestido de uma bondade falsa de seu interlocutor.
Amaral4 esclarece-nos com propriedade:
Insisto: des-adjetivar a deficiência é um caminho.
Ou seja, ser diferente não é melhor ou pior, a diferença não é
boa ou ruim, maléfica ou benéfica, para usar a terminologia de
Laplantin, 1991, aviltante ou enaltecedora. A diferença /deficiência
simplesmente é (p.148).
Mas quando não era e passa a ser?
A pessoa que se pensava poderosa e depara-se com a instalação
da deficiência em sua vida adulta, passa a ser objeto de discriminação
não só dos outros mas de si mesma. Sofre pelos preconceitos
que imputava ao ver um deficiente.
Durante a realização deste trabalho, lembrei-me de um senhor
que atendi há alguns anos, que sofria muito com sua nova situação
de portador de deficiência física e sentia muita vergonha, referia
não poder se apresentar daquela “forma” para os antigos colegas,
pois ele próprio anteriormente participava de rodadas regadas a
bebidas e piadas sobre deficientes, comentava, inclusive das fantasias
sexuais perversas com as “menininhas aleijadinhas”.
Armadilhas do destino? Creio que não. A crueldade venha de
quem for não deve ser perdoada. A pessoa que carrega consigo
tamanha frieza em relação ao outro, sucumbiu à miséria da própria
vida, constituiu-se em relação a um mundo social já construído
que tem predominância sobre ele, ou referindo novamente, a super
valorização da estética, o fetiche da mercadoria e a força do poder.
Fechou as portas para a capacidade de amar, de solidariedade e de
reflexão, e o sentimento de potência é substituído pelo de vergonha.
Satow6, explica-nos muito bem o que é vergonha:
A vergonha é o medo do olhar do outro e é o afeto social por
excelência, pois deriva das relações com as normas da sociedade,
do sentimento de ter-se afastado dessas normas. O estímulo da
vergonha é o olhar do outro, da comunidade, do público. O sentimento
de vergonha é provocado pelo afastar-se das normas sociais:
o olhar do outro condena quem se afastou ou pensa ter se
afastado das normas; por isso, a vergonha é a reguladora da
moralidade, é sempre um instrumento do processo da socialização...
(p. 126).
Não raro, a pessoa que adquire uma deficiência física ao longo
da vida sente-se culpada por este fato, como também, não raro lhe
é outorgada essa culpa. Fantasias de que está pagando por pecados,
que é merecimento por má conduta e maus sentimentos, ainda
vigoram nos dias de hoje; e são sutilmente veiculados pelos meios
de comunicação.
O senhor que comentei não é apenas o algoz da situação, é
também vítima da própria construção de sua vida e do mundo social
em que está inserido. Ele sabia muito bem o que representava
para seus colegas e para si: a traição e ao mesmo tempo o fracasso.
ACTA FISIÁTR. 2004; 11(1): 7-11 Schewinsky S R. A barbárie do preconceito contra o deficiente - todos somos vítimas
Faço aqui uma analogia ao que Adorno / Horkheimer1, teorizam
sobre o criminoso:
... O indivíduo fraco, atrasado, animalizado tem que sofrer,
qualificado, uma forma de vida à qual se resigna sem amor;
encarniçada, a violência introvertida repete-se nele. O criminoso
que, ao cometer seu crime, pôs sua autoconservação acima de tudo,
tem na verdade um eu mais fraco e mais instável, e o criminoso
contumaz é um débil (p. 211).
Paira no ar a insinuação de que se a pessoa deficiente tivesse
morrido seria melhor, seu crime é a própria vida!
Embora atualmente o discurso é da valorização do homem a
todo preço, mesmo assim, os deficientes são desprezados e sucumbem
a várias formas de morte. A morte física propriamente dita, o
suicídio silencioso, o sofrimento psíquico, o confinamento social,
a falta de acesso aos cuidados à saúde, educação e trabalho. Não é
mera semelhança com outras fases da história, principalmente no
tocante aos pobres.
A contradição social vigente precisa ser superada, para que a
vida siga seu caminho com sentido, com condições de
enfrentamento e findar a exclusão. Para tal, é necessária atenção à
dança dos preconceitos de todos e de ninguém, dança envolta na
música do social e na melodia da mentira manifesta.
Retomo ao meu incômodo inicial e talvez do leitor, em que a
tentação de ficar escondida atrás do social é grande. Preciso, eu
própria, olhar para meus preconceitos, desencantar-me comigo,
reconhecer minha prisão e desconhecimento para buscar a reflexão.
Na rotina frenética, é fácil submergir a ideologia sem atentar
para o que está acontecendo. Cultuar o frívolo, passar por cima das
emoções, ignorar o sofrimento e continuar sorrindo! A barbárie
não está só naquele que puxa o gatilho, ou assina as leis, ou vende
as drogas. Ela está na frieza das ações e não ações, no julgamento
do outro, na falta de afeto e de solidariedade.
Ressalto, que muitas vezes somos nossos carrascos. Qualquer
pessoa pode sofrer um infortúnio e ter como seqüela uma deficiência
física. Impossível negar o sofrimento real que as limitações
impingem, mas se vitimar e destituir a vida de sentido não precisa
ser a penalidade. Como também a existência de muitos não portadores
de deficiência é desprovida de condições reais e subjetivas
de qualidade.
Obviamente, não se podem mudar as questões objetivas imediatamente,
mas não é preciso compactuar com aquilo que
sabidamente é injusto e discriminatório. Olhar para si próprio, reconhecer
os limites e inadequações, buscar a reflexão crítica e o
esclarecimento, podem fortalecer o indivíduo e este, assim contribuir
para uma sociedade melhor.
Bacon citado por Adorno / Horkeimer1 vislumbra a solução:
... a superioridade do homem está no saber, disso não há dúvida.
Nele muitas coisas estão guardadas que os reis, com todos os
seus tesouros, não podem comprar, sobre ao quais sua vontade
não impera, das quais seus espias e informantes nenhuma notícia
trazem, e que provêm de países que seus navegantes e descobridores
não podem alcançar... (p. 19).
Enfim, a barbárie do preconceito contra todos e de todos pode
findar, quando for extirpada a crueldade contra os homens e
descortinada a escuridão que encobre o esclarecimento, para que a
VIDA de fato tenha valor.
REFERÊNCIAS
1- Adorno TW, Horkheimer M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor; 1985.
2- Crochík JL. Preconceito, indivíduo e cultura. São Paulo: Robe Editorial; 1995.
3- Silva OM. A epopéia ignorada: a pessoa deficiente na história do mundo de ontem e de
hoje. São Paulo: Cedas Editora; 1987.
4- Amaral LA. Conhecendo a deficiência (em companhia de Hércules). São Paulo: Robe
Editorial; 1995.
5- Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Editora Graal; 1985.
6- Satow LA. Paralisado cerebral: construção da identidade na exclusão. São Paulo: Robe
Editorial; 1995.
ACTA FISIÁTR. 2004; 11(1): 7-11 Schewinsky S R. A barbárie do precon