sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Orgulho e Preconceito, Razão e Insensibilidade

Luis Fernando Knaack de Castilho
Os fatos narrados a seguir são verdadeiros e já devem ter sido vividos por muitos, da mesma forma que o autor deste texto. Do mesmo modo que certas pessoas fazem o bem e não esperam retribuição, outras deixam de fazê-lo, por vezes inconscientemente, sem que possamos culpá-las por tais atitudes. Assim como há pessoas com deficiência física ou mental, há outras com deficiência de formação humanística, o que é uma grave imperfeição do caráter, própria da espécie humana, por mais incrível que isto possa parecer. O que vai ser citado demonstra que muitas vezes, atitudes valem mais que orações, partindo de pessoas simples, gestos difíceis de serem encontrados em pessoas ligadas e sustentadas pela religião. Jesus Cristo, coitado, que viveu pobre e morreu pobre, sempre fazendo o bem, nunca poderia imaginar que algum dia tanta gente ganharia fortunas, explorando a fé alheia através do seu carisma,que permanece vivo quase dois mil anos após o seu desaparecimento.
Aconteceu em 1982. Inesperadamente, após sete meses de gestação, nossa querida filha, a quem demos o nome de Jacqueline veio ao mundo, pesando apenas 1.520 g e com intensa anemia.Para continuar viva, havia necessidade urgente de uma transfusão,de raro tipo sangüíneo. Descobrimos,em parente próximo,a compatibilidade tão desejada.Ao ligar para sua casa, fomos atendidos por sua esposa, que relutava em fornecer o seu paradeiro. Como insistíssemos, disse, hoje ele não poderá doar sangue, pois iremos à nossa igreja, à noite, assistir a um casamento. Não podemos deixar isso para amanhã?Tão logo soube de nossa preocupação, o doador colocou-se prontamente à nossa disposição, pelo que somos gratos até hoje. Em razão da prematuridade,o bebê necessitou permanecer internado por sessenta dias em UTI, na URPE ,conceituada clínica,com competente corpo clínico, à qual devemos a vida de nossa filha.
Com prognóstico reservado quanto à presença de seqüelas neurológicas a serem percebidas em futuro incerto, sofremos angustiante espera. Apesar de ser médico, pude sentir na carne o que vários pacientes já passaram nas garras diabólicas de certos planos de saúde. Na ocasião, fui ao departamento médico da felizmente extinta Golden Cross Assistência Internacional de Saúde, inúmeras vezes para tentar ser reembolsado pelos pagamentos por mim efetuados, tendo ouvido de um "colega" que eu deveria dar graças a Deus, pelo que o plano iria me pagar, como se fosse um grande favor.Tive vontade de torcer o seu pescoço, tamanha a revolta.Graças a Deus ,deveria ele ter dado por eu ter ficado apenas com vontade. Só me pagaram o que deviam,após ameaçar escrever para os jornais. Que máfia!
Após uma longa expectativa, meses depois, temeroso, confirmei, com a consulta à vários especialistas, o que mais temia.
"Sua filha apresenta lesões neurológicas graves, mais conhecidas, por Paralisia Cerebral."
Várias perguntas foram feitas, sem que ninguém as soubesse responder . Nenhum especialista soube afirmar se algum dia nossa filha falaria, andaria ou teria algum déficit mental. Neste campo, infelizmente, a medicina ainda se encontra na idade da pedra, como pude constatar nas longas horas, passadas em salas de espera de diversas clínicas. Ao perguntar ao diretor de famosa clínica sobre a eficiência de diversos métodos, se havia experiências com animais ou coisa assim, disse ele para mim:
- Não, experiências não foram feitas, mas precisamos ter fé !
Neste dia, ao comentar a respeito do grande movimento em seu consultório, ele disse, com um brilho no olhar, esfregando as mãos; Graças a Deus !
Foi feito intenso tratamento fisioterápico, em clínicas, algumas das quais mais pareciam lojas comerciais. Numa delas, uma fisioterapeuta nos apresentou sua outra colega como "minha sócia". Fazia nos sentir mais fregueses do que clientes. Pagamentos eram efetuados adiantadamente. Mais de uma vez , ouvi a pergunta : "Vocês já pagaram este mês?", antes mesmo da compensação do cheque, num estabelecimento da zona sul,à beira-mar. A sensação que tínhamos, era que havia um cifrão estampado na testa de nossa filha. Várias cirurgias foram feitas, visando corrigir seqüelas ortopédicas.
A primeira delas, numa renomada clínica, num bairro aprazível, onde fomos muito bem tratados, pelo seu proprietário, antigo "colega" de pronto-socorro,que não parava de dizer a todo o tempo - "Você é colega nosso,não se preocupe com o pagamento, pois você é nosso irmão. Além do mais, você tem plano de saúde, para que se preocupar?". Na ocasião, argumentei que o plano só cobria despesas hospitalares e que o pagamento aos médicos seria feito através de uma ridícula tabela . " Ora, deixe disso, você é ou não é nosso irmão ?! " E lá ficamos, cerca de sete dias, após a cirurgia sem a menor necessidade, desconfortavelmente instalados, com nossa filha apenas imobilizada por aparelho gessado. Neste período, fomos visitados por muitas baratas e por diversos especialistas, também sem a menor necessidade, pois fora o incomodo do gesso, nada havia para ser feito. Quando falava a respeito da alta, desconversavam No dia de irmos embora, o "colega" puxou um bloco, colocou em cima da coxa e começou a efetuar suas contas, no melhor estilo de um quitandeiro, com todo o respeito. "Cirurgião-x, anestesista-k, instrumentadora-h, pediatra-g,diárias-f, exames-w; televisão-p, acompanhante-t ; total = $$$$$$$. Por favor, colega, pode deixar o seu chequinho,ao portador,sem cruzar, por obséquio. "Não esquente a cabeça com isso, vá ao seguro e brigue que eles vão lhe pagar tudo",afirmou, cinicamente. Vendo que eu não era tão irmão como dizia, pedi meus recibos, para tentar receber o irrisório reembolso oferecido pelo plano de saúde, que pagava apenas as diárias, integralmente, ao contrário das demais despesas, com as quais meu colega dizia que não devia me preocupar. Aguardo dele, até hoje, os recibos médicos, que de tão insignificante reembolso, desisti de receber. Esta clínica, ainda existe e ganhou muito dinheiro, de governos, através de convênios,fazendo exames de alto custo,por atacado, para prefeituras de todo o estado. Hoje, seu proprietário ainda ostenta um alto padrão de vida, desfilando a bordo de luxuosos carros, apesar de processado pela justiça, por várias falcatruas ,juntamente com diversos figurões, autoridades da saúde de governo já encerrado. Eis aqui a prova do sucesso da parceria imoral entre governo e comerciantes da doença. Deixaram apóstolos espalhados por este Brasil afora. Essa turma fez escola!
Hoje, vários anos após, coleciono mais de dez histórias escabrosas, de pessoas que ficaram quase sem as calças,vítimas da ganância do referido abutre, através dos mais abomináveis expedientes, aproveitando-se da vulnerabilidade dos familiares, por ocasião de dolorosos momentos, vividos na emergência de hospital público, de grande movimento, na Zona Norte. Lá trabalhava, drenando sofrida clientela,por meio de sua nojenta teia de aranha,no centro da qual ficava à espreita,para sugar as vísceras dos incautos,cravando neles suas quelíceras peçonhentas, com grande deleite, obtendo assim,o seu pão de cada dia. O seu nome não precisa ser dito pois a Justiça já está acompanhando a sua atuação.Por outro lado, para mostrar que nem tudo está perdido, não posso deixar de citar o Hospital Adventista Silvestre, como organização modelar, pois em nova cirurgia agiu com perfeição, através da competência do Dr. Victor César, honrando o seu plano de saúde. Posteriormente, tivemos a sorte em sermos atendidos em Brasília,no Hospital Sarah Kubitschek, pela equipe do Dr. Álvaro Nomura, que após sofisticada bateria de exames, desconhecidos da maior parte da população, desaconselhou uma nova cirurgia, apontada por jovem e empolgado profissional do Rio de Janeiro,como indispensável, após custosos testes a serem realizados, por sua indicação, em Chicago, nos EUA.
Pelo atendimento, em Brasília,nada nos foi cobrado,além de nossa filha ter evitado uma cirurgia desnecessária e que a deixaria pior do que estava. Quanto profissionalismo! Quero destacar também a atuação da ABBR, organização séria e da fisioterapeuta Érica Luísa Schlinke,autônoma, que após fazer nossa filha andar, com muletas, depois de um grande trabalho, ao ver o quadro de Jacqueline se estabilizar, recomendou cessar a fisioterapia, para nos poupar um gasto desnecessário, ao contrário de certas clínicas, que sangram o paciente até o último centavo.
Passados alguns anos, havia chegado o grande momento. Nossa filha iria estudar! Acompanhados por amiga da família,ex-aluna, fomos nós, pai e mãe e filha, cheios de esperança, levados à presença da "Irmã" Maria de Assis, diretora de escola religiosa de grande fama, Colégio Sagrado Coração de Maria,localizada logo no início de Copacabana,quase ao lado de nossa casa.Era superiora, não só na função que exercia na confraria, mas de fato, na sua maneira de se relacionar com os outros. Moderna, nem de longe parecia uma irmã de caridade, tal a sua elegância e o seu cuidadoso penteado.Impassível,lembrava mais a Rainha de Copas, da história de Alice,do que Madre Teresa de Calcutá. Após conhecer nossa filha,vendo a nossa vontade em matriculá-la naquela escola, exclamou:
- Impossível, aqui temos escadas !
- Mas, irmã, nós temos uma acompanhante à disposição, só para cuidar da menina !
- Impossível, ela sofrerá demais com o preconceito das outras crianças !
- Mas, irmã, nas outras escolas também existem crianças !
- Impossível, não estamos aceitando matrículas de novos alunos! Se me dão licença, estou atrasada para uma reunião com a irmandade. Vão com Deus, passar bem !
Outras escolas, como a Chez l'enfant, na Urca, ficaram de telefonar para me dar uma resposta, pela qual espero pacientemente, até hoje. Após penosa procura, em inúmeras escolas, onde também nos bateram a porta na cara, já resignados a ter uma filha analfabeta,fomos apresentados à professora, de grande conceito, Yvonne Braga Furtado ( que não é irmã de caridade ),pioneira no bairro da Urca, fundadora de tradicional escola por onde passaram diversas pessoas de grande expressão nacional .(Externato Cristo Redentor) Tal senhora, após uma paciente e demorada avaliação do potencial de nossas filha, disse:
- Senhores, nós aqui temos escadas, como as outras escolas, assim como outras crianças,ricas, pobres, filhas de militares, doutores, porteiros e também domésticas; negras e brancas. Não temos riqueza material, mas em valores morais,somos milionários.Não admito preconceitos, de nenhum tipo. A filha de vocês vai estudar aqui, enquanto eu for viva.Todos os anos a sua sala de aulas será no térreo e terei grande satisfação em desenvolver nela toda a sua capacidade. Esta é a razão da minha vida. Nunca me casei ou tive filhos. Meus alunos são meus filhos ! Olhem lá fora, que família bonita eu tenho. Esta é a minha fortuna!
E assim, passaram-se vários anos e nossa filha, devidamente preparada, tornou-se aluna aplicada, com notável desempenho,tanto na escola quanto no Curso Oxford, do Lido,que a aceitou sem restrições,onde estuda Inglês e Computação,conseguindo ótimas notas.Ao contrário da previsão da "irmã de caridade",nossa filha é ótima aluna,não sofre qualquer tipo de preconceito e é bastante querida por colegas e professores, sendo uma adolescente alegre e cativante.O preconceito mais forte que ela sofreu partiu de onde menos poderíamos esperar.Isto mostra que alguma coisa precisa ser feita para deixar de contemplar certos estabelecimentos de ensino, camuflados de entidades religiosas, com isenções de diversos impostos e benesses fiscais várias,em detrimento de outras escolas sérias, cumpridoras de sua função social embora não dirigidas por "religiosos".Como estamos em tempo de reformas, que tal cortar subvenções,isenções,regimes especiais, etc, desfrutados por pessoas e entidades que nada fazem para merecer isto.Fica também colocado o dedo na ferida,de certas "clínicas", que nada mais são do que arapucas, mantidas às custas de generosas verbas públicas,com a conivência de governos.
Para finalizar, nossa filha,agora com quinze anos de idade anda,com auxílio de muletas canadenses e tem a sua inteligência normal,até mesmo acima da média.A altiva irmã está agora desfrutando da sua desejada aposentadoria,o dono da clínica está às voltas com a justiça, embora como de hábito,bastante próspero e a Prof.ª Yvonne,que nunca visou o lucro,continua à frente de sua escola,lutando com grande dificuldade,tendo como recompensa, basicamente, o amor de pais e alunos e a satisfação pessoal em ter realizado uma grande obra. Desejamos a ela uma longa vida, para continuar a fazer o bem a mais pessoas que tenham a sorte de conhecê-la. Também à Irmã Maria de Assis desejamos uma vida bastante longa acompanhada de lucidez suficiente, para que um dia tome conhecimento do sucesso daquela menininha tão frágil, que na ocasião citada viu ser fechada para si a porta da realização como ser humano. Esperamos que ela possa refletir e mudar, enquanto houver tempo para isso. Assim como desejamos que algumas pessoas mudem, achamos que outras devem permanecer da mesma forma para sempre, como Renato Moreira Rosa, humilde ascensorista do edifício 11, da Rua da Assembléia, que ao ver Jacqueline entrar de muletas, com esforço para permanecer de pé em seu elevador,não só ofereceu seu banco, como teve a iniciativa de comunicar aos demais passageiros, que o elevador iria diretamente para o sétimo andar, sem se preocupar com observações, como a do imbecil anônimo e engravatado passageiro, que exclamou indignado, em alto e bom tom: - Isto não tem nada a ver !
Este pequeno relato mostra as dificuldades sofridas pelos pais de crianças com algum tipo de deficiência, seja física ou mental, que moram no Brasil, mostrando que muita coisa pode e deve ser feita em benefício destas crianças, que muitas vezes, deixam de alcançar a sua plenitude intelectual por encontrar no caminho pessoas desprovidas de qualquer tipo de sensibilidade, verdadeiras pedras humanas.Infelizmente,nem todos os protagonistas desta história real podem ser identificados, pois a simples menção de seu nome poderia provocar náuseas nos leitores.
© 1997 Luis Fernando Knaack de Castilho

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