Fotos: Alexandre Santana
Xadrez adaptado permite que Luzia jogue com os amigos, apesar da cegueira |
Casimiro de Abreu, a 140 km do Rio de Janeiro, costuma acolher gente cansada do estresse carioca. Cacau, com seus longos cabelos grisalhos e olhos decididos, aportou por lá há sete anos. Terapeuta ocupacional, ela queria fazer ali o que mais gostava: trabalhar pessoas com deficiências. Para sua surpresa, ouviu um veredicto taxativo: "Mas aqui em Casimiro não há deficientes!". Cacau, no entanto, conhecia bem as estimativas do seu campo de atuação. Calcula-se que 10% da população em todo o mundo possui algum tipo de deficiência. Resolveu fazer ela mesma um censo informal. Cacau, ou Maria do Carmo Stroligo, 38 anos, descobriu que Casimiro não era uma exceção. Também ali existiam deficientes visuais, auditivos, autistas e paralisados cerebrais. Pouco a pouco, a cidade passou a conhecer moradores cujas famílias sequer os levavam às ruas.
O primeiro passo para tirá-los dos domínios domésticos foi a fundação de uma Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) na cidade, em 1995. Para isso, Cacau contou com parceiros insuspeitos. Em um bate-papo com o caixa do banco, descobriu que havia pessoas interessadas em fundar uma instituição de apoio aos deficientes na cidade. Dessa forma, a vontade da terapeuta se cruzou com a de um bancário, que a apresentou a uma professora, que conhecia uma psicóloga... Formava-se, assim, uma rede que resultou na Apae e não pára de crescer.
Com o apoio dos novos amigos, Cacau foi à luta para dar àquelas crianças e adolescentes a chance de se matricular numa escola regular. "Essa mulher foi buscar os deficientes dentro de casa", conta Janete Pinheiro, diretora do Ciep José Bicudo Martins, em Casimiro, a escola que abriu espaço para o sonho de Cacau e de outras professoras. Materializavam-se no município os preceitos da inclusão -proposta das Nações Unidas para acabar com a segregação dos deficientes físicos (leia box). Entre os objetivos da ONU está o fim das escolas especiais. Hoje, em Casimiro, há 12 alunos com deficiências diversas estudando nas classes regulares do Ciep. Outros 45 ainda freqüentam as turmas especiais, desenvolvendo as habilidades que lhes permitirão acompanhar o conteúdo das aulas junto com os demais estudantes.
Em Casimiro de Abreu, a "inclusão" deixou de ser conceito abstrato para fazer parte do dia-a-dia de moradores, como o do comerciante Júlio César Marques. Dono de uma lanchonete na rodoviária, Julinho conheceu Cacau ali mesmo no balcão. Conversa vai, conversa vem, ele resolveu mostrar à terapeuta um jogo de xadrez que havia desenvolvido para deficientes visuais. A engenhoca foi criada como um gesto de solidariedade para um amigo que perdera a visão de forma trágica. "Eu imaginei como seria a minha vida se aquilo acontecesse comigo", conta Julinho. Ao dividir a dor com o amigo, o comerciante deixou fluir sua inventividade.
O inventor
A fonoaudióloga Leiva carrega Daiana Silva, paralisada cerebral, no cavalo manchinha |
O primeiro obstáculo foi desvendar a linguagem braile. Aos poucos, Julinho foi descobrindo o significado de cada conjunto de pontos que forma as letras do alfabeto perceptível pelo tato. Queimou a pestana para achar um jeito de transpor aquele universo para um jogo de xadrez, um dominó ou um baralho. Ao entrar em contato com a Apae, ele descobriu um público ávido por testar os inventos. De seu cérebro privilegiado saiu um jogo de xadrez em que não é preciso enxergar as peças: o formato da base de cada uma reproduz o movimento que se pode fazer no tabuleiro. Julinho fez ainda réglettes (réguas de quatro faces) gigantes -com a base em papelão e as letras do alfabeto em braile reproduzidas com bolas de gude. Elas são o instrumento usado para a escrita em braile, que, transformadas em brinquedo, tornam o aprendizado mais fácil. "Sinto muito orgulho de estar participando dessa transformação", emociona-se o comerciante.
Da lanchonete, o comerciante tira seu sustento e mais as caixas de biscoitos, cervejas e refrigerantes. É com o papelão das embalagens que ele faz algumas peças, todas cofeccionadas artesanalmente. A genialidade de Julinho, que cursou apenas o 1º grau, lhe renderia trabalho em qualquer lugar do mundo, mas ele nem pensa em sair de Casimiro. No máximo, vai ao Rio para registrar suas idéias na Biblioteca Nacional, na esperança de que um dia elas ultrapassem os limites do município. Seu sonho é publicar livros com os desenhos das peças dos jogos em tamanho original, de modo que possam ser montadas pelos leitores. Lucro não lhe interessa. Já teve ofertas para comercialização dos brinquedos, mas não quer ver suas invenções em plástico. Ele acha que o papel é ideal para o projeto que tem em mente. "As folhas do livro seriam destacáveis e o trabalho de recortar, colar as peças no papelão e montá-las ficaria a cargo de pessoas deficientes ou até de presidiários, que assim teriam uma fonte de renda", explica o inventor.
Os jogos adaptados podem ser usados tanto em sala de aula quanto no pátio. No Ciep, o intervalo de aula é um momento especial.Tem alunos correndo e jogando bola ao lado de outros em cadeiras de rodas ou sendo guiados pelas mãos. As rodinhas de crianças nem sempre são barulhentas. Em algumas, o silêncio acompanha longos bate-papos entre mãos que trocam sinais rápidos. Ninguém inspira piedade -são todos alunos.
A escola
O coral mãos que cantam: expressão dos gestos substitui as vozes no "hino nacional" |
Um dos mais animados no recreio é Isaías Coelho, 13 anos, que tem síndrome de Down e muito ritmo. Durante o intervalo, toca sem parar o seu inseparável pandeiro e anima a garotada ao redor. Bem diferente do garoto que foi "resgatado" de casa por Cacau. Morador da zona rural, Isaías vive com a mãe e dois irmãos, num casebre sem conforto, sem banheiro. Há dois anos, a kombi da prefeitura passa por lá para levá-lo à escola. A expectativa dos professores é de que em três anos Isaías esteja pronto para ser alfabetizado. O contato com a Apae vai trazer outros benefícios para a família do garoto. A pensão do INSS a que ele tem direito por conta da deficiência está sendo recebida indevidamente pela atual companheira do pai. Mas já foi dada entrada em um processo para registrar o benefício de um salário mínimo em nome da mãe. "Ele se tornou um garoto mais calmo e vai começar a ajudar no sustento da casa", conta Cacau. Isaías e os outros portadores de deficiência integrados ao Ciep contam com vários "anjos da guarda". São os serventes da escola, fervorosos defensores da inclusão, ainda que não conheçam o significado da palavra. Se algum precisa de ajuda para ir ao banheiro, por exemplo, eles estão sempre a postos. "Convivendo com as diferenças desde cedo, as pessoas amadurecem, se tornam mais solidárias", acredita Lila Gaspar, orientadora educacional da escola.
É verdade que a descontração do recreio nem sempre está presente nas salas de aula. Leandro Pessanha, 18 anos, deficiente mental, e muito levado, deu trabalho quando entrou na escola. Para chamar a atenção da turma, ele se levantava no meio da aula para dançar, provocando gargalhadas e atrapalhando a professora. Até que os colegas deixaram de rir das gracinhas e aos poucos ele foi parando. "No início foi meio estranho, a gente achava que ele não tinha que estar com a gente", reconhece Tássia Salles, 11 anos, aluna da 5a série, a classe que recebeu Leandro. Pouco depois, as opiniões mudaram. "Ele nos ajuda a não ter preconceito", diz Mayara Machado, outra colega de Leandro.
Nos bastidores, as professoras estão sempre trocando idéias, criando alternativas para incluir novos alunos. Janete, a diretora, reconhece que não vem sendo fácil superar seus preconceitos, e até sua formação, para apostar incondicionalmente na inclusão. "Não fui educada para aceitar as pessoas diferentes", admite. "Mas descobri que existe uma certa felicidade na convivência com essas pessoas."
O processo de inclusão deve seguir um roteiro bem definido. O passo-a-passo prevê a preparação de professores, que devem aprender técnicas para ensinar a quem não pode ler, ouvir ou compreender perfeitamente. É preciso também adaptar materiais didáticos. A turma que vai abrigar um aluno com deficiência também deve receber orientação. Mas em Casimiro não dava para esperar.
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